sexta-feira, 22 de abril de 2011

Voceísmo

Entrevista. A repórter do jornal, este absolutamente interessado em cumprir o seu mister social, mune-se dos seus petrechos e indaga da sua entrevistada sobre o que é preciso fazer para evitar que novos episódios de massacre em escola venham a acontecer. Ela até começa bem, engata a pergunta e recebe:

— Bem, aaah..., você tem que dar mais educação aaah... para o povo, aaah..., não basta você apenas aaah... você reforçar o aparelhamento de segurança pública, aaah..., porque senão você cai num aaah..., círculo vicioso aaah..., e aí, aaah..., você permanece com os problemas, você continua com eles aaah..., só que aaah... mais agravados. Você sabe, né, aaah... educação é a base de tudo...

[...]

Creio que a maioria das pessoas já notou o voceísmo — essa síndrome do você. É o uso indiscriminado do você em qualquer construção de comunicação falada, numa usurpação do direito natural quer dos adequados pronomes pessoais, quer da forma impessoal. É um tal de você isso, você aquilo... Sem mais nem quê. Interpelado, o falante sai logo com essa pérola: "se você cuidar disso, se você fizer aquilo...". O você está assumindo o papel do governo, de terceiras pessoas, doutras entidades. Você está-se apropriando dum limiar de alienação plena.

[Na maioria dos casos, o voceísmo faz-se acompanhar abundantemente de outra figura, o denominado marcador discursivo [1, 2, 3], elegante eufemismo — muitas vezes, embora não todas — para mero apoio linguístico ou muleta linguística, a denotar incertezas, inseguranças, medos etc.: aaah..., éhhh..., então..., entende?..., tipo assim..., meio que..., tá ligado?... e tantas outras construções, as mais curiosas e inesperadas que se possa imaginar. Mas isso já é outra história...]

Há, com efeito, outra faceta do voceísmo. Ao usar impropriamente o você, quem fala exime-se sutilmente da responsabilidade da coisa. Afinal — acudirá consigo mesmo — eu não disse "eu", disse você... E, quer se queira, quer não, estará, em princípio, com a razão. Não fui eu quem fiz ou deixei de fazer. Foi você.

Nem se iluda alguém em pensar que isso é coisa de iletrado, qualquer do povo. Enfaticamente, não! Não apenas. Gente culta (por suposto, culta...), executivos, magistrados, ministros de Estado, altas autoridades já aderiram ao voceísmo. Você... Se duvidar, basta ouvir um ministro (até das cortes mais altas) falar.

É preciso anotar aqui, a bem da verdade, que o fenômeno do voceísmo insere-se, num contexto mais amplo, noutro fenômeno cultural, político-social, precisamente a subculturação (mais grave que aculturação, por significar uma submissão aos quereres doutra cultura) inter-nacional. Com efeito, o nosso pobre voceísmo é legatário do alienígena youism, como é correntemente praticado nos países de cultura inglesa, com especial (e triste) destaque para os Estados Unidos da América (ou, como, em arrogante usurpação, demonstração de ignorância efetiva, diz o povo de lá: a "América"...). Pois lá, o sujeito tendo a palavra, é um tal de you see..., if you want, you can..., but aah..., because it makes sense to you, doesn't? Mas, não, desafortunadamente  não faz sentido...

Caiu a impessoalidade elegante da fala culta. Não é que se advogue aqui alguma retórica antiquada, ou uma impessoalidade per se intencionada, na medida exata da fuga da responsabilidade do ser pessoal. Não é isso. A gravidade que se dá é que acadêmicos universitários — a sociedade como um todo — estão visitando as raias do empobrecimento comunicacional, sem sequer darem-se conta disso. É triste ver que as boas e organizadas estruturas de pensamento-verbalização estão sofrendo tão duro golpe. Nem se levem em conta as pequenas oscilações vindas dos tribeses — linguagens de tribos da era da informática, entre outras: pq vc naum ker tk... Isso é muito bem delineado e não afeta o corpus principale. Ademais, é coisa de fácil inserção e tratamento. Mas aqueloutro, aquele...